9.7.04

Cinco Segundos - Capítulo VIII: O Regresso ao Local do Crime

Rickert olhou uma vez mais para a superfície esburacada que o monitor do seu assento lhe mostrava. A Lua continuava com o mesmo aspecto e a mesma cor que da última vez em que ali estivera. Viera antes para cometer um homicídio múltiplo, vinha agora para eliminar quem o levara a cometer esse crime. Um nome não lhe saía da mente: Arif Kalter, representante da Aumann-Yoko no satélite da Terra. Fora ele que os auxiliara na fuga, obtendo-lhes novas identidades que lhes tinham permitido o regresso à Terra sem sobressaltos. Na fuga do Clube Apolo, Rickert detectara todos os possíveis perigos e tinham saído incólumes do complexo. Tinham largado a carrinha na zona industrial, onde os esperava um veículo rápido que os levara até aos aposentos de Arif Kalter no edifício da Aumann-Yoko, bem no centro de Moonkrater. O resto fora quase rotina e uma vez chegados ao espaçoporto de Willow haviam regressado a Flatland de magnetrain, misturados com a multidão.
A voz suave fez-se ouvir: a alunagem estava próxima. Ao seu lado o Massa Lenta fazia estalar os dedos, lívido. Ele nunca saíra do planeta e aquela viagem estava a arrasar-lhe os nervos, mas se não fosse a sua habilidade para penetrar nos sistemas informáticos alheios nunca poderiam tê-la realizado pela simples razão de não possuírem dinheiro para ela. Uma subtil alteração nas reservas do moonscrapper que partia de Willow arranjara-lhes dois lugares no primeiro voo do dia seguinte. O relógio à sua frente dizia que eram 9:05 do dia 15 de Setembro, Tempo Padrão Terrestre.
Com a rememorização dos quatro dias perdidos soubera também como fora parar ao beco. A pretexto de comemorarem num bordel o sucesso da operação tinha ido com Ariel e Lucius para o Sinheaven. Colbert iria directamente para lá. Fora muito engenhosa a utilização da identidade do último homem que ele tinha morto como a sua própria identidade. Foi ainda como Serzenko que foi até ao beco para que os três vissem coisas interessantes através das janelas dos quartos do bordel. A última coisa de que se recordava como Serzenko, assassino profissional, era da voz de Ariel a chamá-lo e dum clarão intenso que lhe queimara o cérebro. Acordara horas depois como o Rickert que sempre fora, molhado até aos ossos sobre um monte de sucata à espera da reciclagem.
O sinal luminoso do painel informou-o que o moonscrapper "Twilight" tinha entrado na sua órbita de alunagem e que ele, Rickert, estava irremediavelmente em rota de colisão.

O edifício da Aumann-Yoko resplandecia como um diamante. Ao pé dele as instalações governamentais mais pareciam casebres. Apenas puderam vê-lo por alguns instantes, enquanto o transporte de cidade os levava para o mesmo hotel onde Rickert havia ficado na sua visita anterior. O Massa Lenta já estava menos pálido embora o seu rosto ainda mostrasse apreensão.
Passaram a tarde a instalar-se e a verificar a artilharia depois de um almoço um tanto frugal num dos restaurantes do hotel. Os estômagos de ambos ainda protestavam contra a gravidade anormal que sentiam.
Rickert olhava para as armas que o Massa Lenta trouxera e interrogava-se como tinha ele feito passar todo aquele arsenal pelo controlo do espaçoporto. O Massa Lenta era um homem muito versátil. Deitou-se na cama e deixou a mente divagar. Olhou o seu rosto no espelho do tecto e notou as olheiras negras e as rugas de preocupação na testa. O cabelo estava revolto como sempre, negro e baço. Começava a olhar-se cada vez mais como a um desconhecido.
- Jantamos no hotel e depois vamos ao bar, o que é que achas?
- Por mim está bem. – respondeu o Massa Lenta sem tirar os olhos da arma que estava a montar.
- Conheço lá uma pessoa.
- Isso pode ser perigoso.
- Não creio. Eles abafaram completamente o caso, ninguém sabe das mortes. Ela até pode ajudar-nos!
- Tinha de ser, Rickert. Nem mesmo eles conseguiram mudar isso em ti.
- Ela era muito bonita. Como vamos fazer, falamos directamente com Arif Kalter?
- Ele é o manda-chuva da Aumann-Yoko aqui na Lua. Achas que é chegar lá e pedir para falar com ele?
- Eu não disse que íamos entrar pela porta da frente, existem muitas maneiras de falarmos com ele. E muitos sítios, também.
- Não queria ser reciclado aqui na Lua.
- Havemos de voltar vivos, Massa Lenta. Hoje vamos divertir-nos, amanhã começamos a caça.
O Massa Lenta arrumou as armas num saco enorme e dirigiu-se para a porta do quarto.
- Daqui a meia hora, lá embaixo. – disse.
- Ok. – Rickert resolveu levantar-se e ir tomar um banho rápido. Iria gostar de rever Mary-Ann.

De todas as coisas que existiam na Lua, Mary-Ann era certamente uma das melhores. Ela parecia não se ter importado muito com o seu desaparecimento súbito, ou pelo menos não o deixara transparecer. Ficara mesmo contente quando o vira, Rickert reparara no brilho dos seus olhos.
Tinha sido uma noite óptima, como já a outra tinha sido, mas agora a acção tornava-se necessária. O Massa Lenta retirara-se do bar sozinho, estava demasiado nervoso para pensar em mulheres. Retirado do seu meio ambiente sentia-se deslocado, não perdera a sua eficiência mas estava anormalmente agitado para quem costumava fazer gala de uma frieza imperturbável. Felizmente Mary-Ann saíra cedo do quarto e Rickert podia começar com os preparativos da caçada a Arif Kalter.
Existia a eventualidade de ser um dia perdido se a rotina de Arif Kalter não o levasse a locais que permitissem uma abordagem "informal". Nada aconteceu até às 16:15. Foi a essa hora que ele saiu no seu transporte privado com apenas dois guarda-costas e destino desconhecido. O veículo só parou junto a um edifício que dava pelo nome de Paraíso Cósmico e que uma rápida consulta à consola informativa do carro revelou ser um bordel de luxo.
- É a nossa oportunidade, Rickert. Só dois guarda-costas e um sítio ideal para o interrogarmos.
- Tens tudo pronto? – o Massa Lenta entreabriu o blusão e mostrou o dispositivo que elaborara: uma arma de tiro rápido com um lançador de dardos montado por cima – Então vamos.
A recepcionista não teve tempo para esboçar a mínima reacção. O Massa Lenta puxou-a da cadeira contra a parede e disparou o lançador à queima-roupa.
- Têm o mau hábito de accionar alarmes escondidos. – explicou.
Rickert consultou os registos no terminal. Não existia nenhum Arif Kalter na lista, mas pela hora de entrada concluiu que o homem da Aumann-Yoko era referido como Suleiman Metterling.
- Quarto 23.
O veludo negro que forrava as escadas abafava o ruído dos passos de Rickert e do Massa Lenta. Ouviram-se dois silvos e os guarda-costas de Arif Kalter caíram no chão quase sem ruído. A fechadura composta não foi grande adversário para o Massa Lenta, alguns segundos bastaram para penetrarem no quarto.
Arif Kalter estava sentado na cama e lutava com as suas peúgas. Uma rapariga de aspecto oriental estava deitada nos lençóis de cetim cor-de-rosa pálido, completamente nua. Uma situação perfeitamente normal.
O homem da Aumann-Yoko não tentou reagir, esboçou apenas um sorriso e voltou-se de frente para os invasores.
- Espero que me perdoem por os receber assim, não esperava qualquer visita nesta altura, como aliás devem compreender. Senhor Rickert, – cumprimentou – e você deve ser o Massa Lenta.
- Vamos acabar com a conversa de chacha. Você sabe porque estamos aqui.
- Perfeitamente! E vou esclarecer todas as vossas dúvidas. O que aqueles velhos exigiram à Aumann-Yoko não vale de maneira nenhuma a minha vida, ainda sou novo e espero atingir lugares mais altos na nossa organização. – Rickert e o Massa Lenta entreolharam-se surpreendidos pela inesperada colaboração.
- Nunca concordei no envolvimento da Aumann-Yoko neste tipo de operações – continuou – mas sou apenas um funcionário sem grande influência nas decisões da administração. Posso vestir-me? Muito bem, seria melhor que se sentassem porque é uma história muito comprida.
Traição! Uma só palavra e, no entanto, tão usada ao longo da História. Nos esgotos que eram os meandros da Administração as ratazanas lutavam pelos recantos onde chegavam as réstias de luz, cortando as goelas umas às outras e utilizando quase sempre outros ratos para fazerem o trabalho sujo por elas. Rickert fora o rato daquela traição: a jovem oposição (todos aqueles velhos nojentos que matara na sala 109 do Clube Apolo) protestara demais, e o poder estabelecido (outros velhos tão velhos quanto eles) conspirara para os eliminar. Usaram as ligações à poderosa Aumann-Yoko e trataram de os assassinar por atacado. A companhia escolhera Rickert depois de descobrir no seu mapa cerebral umas circunvoluções muito prometedoras. Adivinhador de futuros, era isso que ele era. Fora escolhido porque, inconscientemente, detectava as situações de perigo um instante antes de elas acontecerem. Uma máquina de leitura do futuro imediato que não sabia que o era: quem melhor do que ele para desempenhar uma missão num ninho de vespas? O rato nunca sabia o porquê, mas isso não era necessário desde que desempenhasse a tarefa a contento. Para mais, polícia e Aumann-Yoko nem sempre se destrinçavam. Era fácil obter tudo para uma organização tão poderosa.
- Como vêem, nem tudo o que parece ocasional o é na realidade. Uma ficção bem elaborada pode substituir com vantagens a sucessão incerta dos acontecimentos. Você foi um bom actor Rickert, desempenhou de uma forma esplêndida o seu papel! Ninguém esperava que você fosse tão insistente. – levantou-se e foi até ao casaco que deixara pendurado no varão da roupa. O Massa Lenta levantou-se – Não esteja nervoso, eu nunca ando armado. Isto é para vocês, uma pequena contribuição da minha parte para acabar com esses velhos asquerosos. – entregou a Rickert um cartão em plástico negro com letras douradas – Apesar da cor esse cartão dá-vos carta branca aqui na Lua. Vai permitir-vos chegar até eles e sair daqui sem problemas. Esses velhos que nos governam passam quase todo o seu tempo aqui, entre operações plásticas e transplantações mais ou menos complicadas. Alguns já se instalaram permanentemente; uma gravidade fraca é óptima para a longevidade. Costumam reunir-se no Foggerty, um clube ultra-selectivo ao norte do complexo central. Penso mesmo que se reúnem todos os domingos ao início da noite. – olhou para o relógio e sorriu-se – Ainda têm tempo.
- E porque é que faz isto? – interrogou Rickert.
- Digamos que é a minha pequena vingança por não ter sido ouvido pela administração da Aumann-Yoko.
Rickert olhou para o Massa Lenta e fez um pequeno movimento com a cabeça. O corpo inanimado de Arif Kalter tombou na carpete espessa e o da rapariga ficou inerte sobre os lençóis de cetim cor-de-rosa pálido. Só dois silvos sucessivos haviam quebrado o silêncio.